De Cookies a Clean Rooms: estratégias vencedoras de Retail Media na era da privacidade

O Retail Media tem sido a estrela indiscutível do marketing digital nos últimos anos. Estabeleceu-se como o terceiro gigante da publicidade, logo atrás dos titãs da busca e das redes sociais. O seu sucesso baseia-se numa premissa poderosa: utilizar os dados de compra reais dos consumidores para lhes oferecer anúncios incrivelmente relevantes no ponto exato de venda. Para as marcas, é um sonho tornado realidade. Para os retalhistas, uma fonte de receita multimilionária.

Mas uma tempestade perfeita está a formar-se no horizonte de 2025. O pilar que sustentava grande parte deste ecossistema, o livre fluxo de dados de terceiros e os famosos cookies, está a desmoronar-se. Impulsionado por regulamentações de privacidade novas e rigorosas e por um consumidor cada vez mais consciente da sua pegada digital, o campo de jogo está a mudar completamente.

Este artigo não é um prenúncio do fim do Retail Media. Pelo contrário, é um guia para navegar nesta nova era. Exploraremos como as leis de privacidade estão a impactar as estratégias atuais. E, mais importante, que passos práticos as marcas e os retalhistas podem dar para sobreviver e prosperar. Porque a partir de 2025, o sucesso já não dependerá da quantidade de dados que acumula, mas da inteligência e ética com que os utiliza.

Contexto: por que 2025 é um ponto de viragem

A combinação de maior fiscalização regulatória, novas obrigações de transparência e consentimento, e mudanças técnicas nos navegadores e plataformas está a redesenhar a forma como capturamos, ativamos e medimos dados. E é aqui que reside o ponto de viragem para o Retail Media em 2025.

Mas, longe de ser um travão, a privacidade está a tornar-se uma vantagem competitiva para aqueles que dominam o uso de dados primários (first-party data), a colaboração segura através de clean rooms e outras tecnologias de melhoria da privacidade (PETs), e a medição padronizada orientada para vendas incrementais.

O contexto de mercado apoia esta transição: O Retail Media continua entre os canais de maior crescimento, mas é também um dos mais escrutinados pela sua promessa de atribuição de vendas e pela proliferação de redes que competem por orçamentos limitados.

O novo cenário da privacidade: O que mudou realmente?

Para entender o futuro, devemos primeiro compreender as forças que o estão a moldar. Não se trata de uma única mudança, mas de três mudanças sísmicas que estão a convergir ao mesmo tempo.

O fim de uma era: o desaparecimento dos cookies de terceiros

Durante décadas, os cookies de terceiros foram a base da publicidade online. São pequenos fragmentos de código que seguem os utilizadores de um site para outro, construindo um perfil detalhado dos seus interesses e comportamentos. Já alguma vez pesquisou por um par de sapatilhas e depois viu anúncios dessas mesmas sapatilhas em todos os sites que visita? Isso é obra dos cookies de terceiros.

O Google Chrome, o navegador mais utilizado do mundo, iniciou oficialmente a eliminação progressiva dos cookies de terceiros em janeiro de 2024. A Apple já o fez no Safari e com a sua política de Transparência de Rastreamento de Aplicações (ATT), que exige o consentimento explícito do utilizador para ser rastreado. Na prática, isto significa que a capacidade de seguir um utilizador através da internet para lhe mostrar anúncios está a desaparecer.

O quadro regulamentar: As leis que colocam o utilizador no comando

O Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), em vigor na Europa desde 2018, marcou um antes e um depois ao conceder aos cidadãos um controlo efetivo sobre as suas informações pessoais e redefinir a forma como as empresas as gerem. A partir daí, leis como a CCPA e a sua atualização, a CPRA na Califórnia, bem como regulamentações promovidas no Brasil, Canadá, Índia e Reino Unido, consolidaram uma tendência que rapidamente se espalhou por todo o mundo.

Para além dos requisitos legais, estas regulamentações baseiam-se numa ideia central: os dados pessoais são propriedade do indivíduo. Daqui surge a obrigação empresarial de agir com transparência, explicar como utilizarão a informação e obter consentimento explícito. Este quadro regulamentar, que se está a tornar cada vez mais amplo e exigente, está a transformar fundamentalmente a forma como a indústria da publicidade se relaciona com as pessoas.

A mudança no consumidor: A confiança como nova moeda

O terceiro e talvez mais importante fator é o próprio consumidor. Hoje, os utilizadores são mais céticos e mais bem informados. Sabem que os seus dados são valiosos e exigem um maior controlo. Um estudo da McKinsey revela que 87% dos consumidores não fariam negócios com uma empresa se tivessem dúvidas sobre as suas práticas de segurança.

A privacidade deixou de ser uma questão técnica para se tornar um fator de decisão de compra. Os consumidores recompensam as marcas que são transparentes e respeitadoras com a sua lealdade, criando um laço de confiança que vai muito para além de uma simples transação.

Esta imagem ilustra a transição de cookies para clean rooms: estratégias vencedoras de Retail Media na era da privacidade

Impacto concreto nas estratégias de Retail Media

Estas mudanças não são teóricas; têm consequências muito práticas para as táticas diárias de qualquer profissional de marketing que trabalhe com Retail Media.

Dados e audiências: a nova realidade

A primeira consequência é que os dados primários (first-party data) consentidos se tornam o ativo diferenciador final. Os programas de fidelidade assumem uma nova importância estratégica. Os retalhistas podem recolher informações diretamente com o consentimento dos seus clientes.

A troca de valor ganha proeminência. As redes de Retail Media que se baseiam em dados de transação e fidelidade, obtidos com uma troca de valor clara e documentada, podem construir audiências de alta qualidade sem depender de identificadores de terceiros. Mas também precisam de fortalecer os seus centros de preferência, registar bases legais por finalidade e oferecer métodos de revogação simples e simétricos.

O design da experiência de consentimento, alinhado com as diretrizes da agência francesa CNIL ou da espanhola AEPD, não só reduz o risco de sanções: também aumenta a taxa de adesão (opt-in) quando comunica benefícios tangíveis ao cliente e simplifica a escolha.

Paralelamente, a dependência de IDs que visam replicar cookies de terceiros deve ser avaliada com escrutínio legal e ético. Isto deve ser feito caso a caso, dadas as restrições explícitas à combinação de dados sem uma base legitimadora e os sinais de recusa do utilizador que devem ser respeitados. As Clean rooms e as Tecnologias de Melhoria da Privacidade (PETs) surgem como soluções chave. Nestes espaços, nenhuma das partes expõe dados brutos: a correspondência e a análise são realizadas de forma protegida, com resultados agregados e controlos de acesso rigorosos.

Ativação: novas formas de chegar ao consumidor

Os retalhistas estão a fortalecer as suas propriedades digitais. Na ativação, a ênfase desloca-se para os ambientes no local (on-site) e na aplicação (in-app) do próprio retalhista. Aqui, a relação com o utilizador e o quadro de consentimento são mais claros, e a “correspondência” de audiências é nativa.

As estratégias fora do local (off-site) estão a evoluir para audiências de dados primários (first-party) e sinais agregados. A Privacy Sandbox da Google e a publicidade contextual estão a ganhar terreno. Os anunciantes adaptam as suas mensagens ao conteúdo que o utilizador está a consumir.

Os modelos de audiências semelhantes (lookalike) enfrentam limitações significativas. A sua eficácia diminui sem dados de terceiros robustos. As estratégias entre sites (cross-site) requerem bases legais sólidas e consentimentos explícitos.

Medição e atribuição: do detalhe a uma visão global

A medição e a atribuição são, talvez, a área onde as mudanças são sentidas mais intensamente. O rastreamento ao nível do utilizador individual está a tornar-se menos viável, enquanto os métodos de agregação de dados se estão a consolidar como a alternativa dominante. Para se adaptarem, as empresas estão a optar por abordagens híbridas que combinam diferentes fontes de informação.

Neste novo cenário, as experiências controladas e os testes geográficos estão a ganhar proeminência. A Modelação de Mix de Meios (MMM) está novamente a ocupar o centro do palco, e as métricas de incrementalidade são consideradas a referência mais sólida para provar a eficácia. Paralelamente, as diretrizes do Interactive Advertising Bureau (IAB) e do Media Rating Council (MRC) garantem a comparabilidade, as auditorias independentes reforçam a credibilidade e a transparência na medição surge como um verdadeiro fator diferenciador.

Governança e contratos: a conformidade como prioridade

Os Acordos de Processamento de Dados (APDs) estão a tornar-se obrigatórios em todas as colaborações. Os limites de retenção de dados requerem revisão constante. A minimização de dados orienta as decisões técnicas e comerciais.

As avaliações de impacto sobre a proteção de dados são integradas nos processos de negócio. O reconhecimento de sinais de exclusão (opt-out) como o Controlo de Privacidade Global (GPC) está a tornar-se padrão. A capacidade de responder aos direitos dos utilizadores está a tornar-se mais profissional.

A avaliação de fornecedores inclui critérios de privacidade obrigatórios. As Clean rooms e as soluções de identificação devem cumprir normas rigorosas. O apoio aos direitos dos utilizadores está a tornar-se um requisito contratual.

Estratégias de adaptação: da ameaça à oportunidade

Longe de ser o apocalipse, este novo cenário é uma oportunidade para construir um ecossistema publicitário mais forte, transparente e eficaz. Aqui estão as quatro estratégias chave para liderar a mudança.

Estratégia 1: Fazer dos dados primários (First-Party Data) o principal ativo

Os retalhistas estão sentados numa mina de ouro deste tipo de dados:

  • Histórico de compras: Os dados mais valiosos. Sabe o que compram, quando e com que frequência.
  • Programas de fidelidade: Fornecem informações demográficas e de preferência em troca de benefícios.
  • Navegação no local (on-site) e na aplicação (in-app): Que categorias visitam, que produtos procuram, o que adicionam ao seu cesto.
  • Interações com o serviço de apoio ao cliente: Perguntas, problemas e feedback direto.

Esta imagem ilustra a estratégia 1: Fazer dos dados primários (First-Party Data) o principal ativo

Como pode potenciá-los?

  • Enriquecer perfis: Utilize inquéritos, questionários interativos e centros de preferência onde os utilizadores podem dizer-lhe explicitamente no que estão interessados.
  • Unificar informações: Certifique-se de que os dados da loja física, do site e da aplicação estão ligados para ter uma visão real de 360º do cliente.

A qualidade supera a quantidade na nova era. Um dado obtido com consentimento vale mais do que centenas de pontos de dados inferidos. A segmentação precisa substitui as audiências em massa. A personalização autêntica gera melhores resultados do que a hiperpersonalização invasiva.

Estratégia 2: A tecnologia como ponte: Data Clean Rooms e CDPs

As Data Clean Rooms funcionam como espaços de colaboração seguros. Imagine-as como uma sala trancada onde um retalhista e uma marca podem analisar dados conjuntos. Dentro desta sala, um sistema cruza as informações de forma anónima para encontrar correspondências e gerar relatórios. Por exemplo, a marca pode descobrir quantos dos utilizadores que viram o seu anúncio de TV também são membros do programa de fidelidade do retalhista, sem que nenhuma das partes veja os dados pessoais da outra. Isto permite a medição e a colaboração publicitária, respeitando plenamente a privacidade.

Esta imagem ilustra a estratégia 2: A tecnologia como ponte: Data Clean Rooms e CDPs

As Plataformas de Dados de Clientes (CDPs) unificam informações dispersas. Ligam dados do ponto de venda, comércio eletrónico, aplicação móvel e serviço de apoio ao cliente. Esta visão unificada permite uma personalização consistente em todos os pontos de contacto.

Estratégia 3: O renascimento da publicidade contextual

A publicidade contextual não é nova, mas está a viver um renascimento. Em vez de se basear em quem é o utilizador, baseia-se no contexto do que ele está a ver naquele momento. A versão moderna vai muito para além de colocar um anúncio de carro numa revista de automobilismo. Graças à inteligência artificial, é agora possível analisar o conteúdo de uma página em tempo real para compreender o seu tema, sentimento e nuances.

Exemplo prático: Uma marca de massa sem glúten não anuncia para “pessoas interessadas numa vida saudável” (segmentação comportamental), mas em vez disso coloca o seu anúncio diretamente numa página com receitas de lasanha sem glúten (segmentação contextual).

Esta imagem ilustra a estratégia 3: O renascimento da publicidade contextual

Esta estratégia respeita completamente a privacidade do utilizador. Não requer cookies ou rastreamento entre sites. Baseia-se no momento presente e no conteúdo atual. Os utilizadores percebem estes anúncios como menos intrusivos и mais úteis.

Estratégia 4: Construir um círculo de confiança com o consumidor

A melhor estratégia técnica será inútil se não houver confiança. A privacidade não deve ser vista como uma obrigação legal, mas como uma vantagem competitiva.

  • Transparência radical: Comunique de forma clara e simples que dados recolhe e, acima de tudo, que benefício o cliente obterá em troca. Esqueça os textos legais intermináveis.
  • O valor da troca: O consumidor está disposto a partilhar os seus dados se receber um valor real em troca. Isto pode ser:
    • Descontos e ofertas personalizadas.
    • Recomendações de produtos que realmente lhes poupam tempo.
    • Conteúdo exclusivo ou acesso antecipado a produtos.

Esta imagem ilustra a estratégia 4: Construir um círculo de confiança com o consumidor

Quando um cliente sente que está no controlo e que a marca está a usar os seus dados para melhorar a sua experiência, a relação é fortalecida.

Construir o futuro: Como a transparência está a redefinir o Retail Media

O Retail Media entrou na sua fase de “privacidade nativa”. Nesta fase, a privacidade já não é percebida como uma restrição, mas torna-se a pedra angular de um modelo mais competitivo e sustentável. A transição para um ecossistema baseado em dados primários (first-party data), consentimento explícito e tecnologias que permitem a colaboração sem comprometer a segurança da informação marcará a diferença entre as empresas que se adaptam e as que ficam para trás.

Esta mudança exige a passagem de uma abordagem de acumulação indiscriminada de dados para uma estratégia em que o valor para o cliente é o principal motor. A transparência, o respeito e a inovação tecnológica são agora requisitos para ganhar relevância num mercado cada vez mais exigente.

As marcas e os retalhistas que abraçarem esta lógica não só garantirão o seu crescimento, como também liderarão a redefinição da publicidade como um espaço mais criativo, ético e eficaz. Em suma, o grande ativo do futuro não será a quantidade de dados, mas a qualidade das relações construídas a partir deles. E nesse cenário, a transparência e a confiança consolidam-se como a moeda mais poderosa do marketing digital.